Mito da colonização brasileira: do genocídio à Pequena Era do Gelo

Guerras do Brasil

“O Brasil não existiu. O Brasil é uma invenção. E a invenção do Brasil nasce exatamente da Invasão”. É com essa afirmação de Ailton Krenac, Historiador e Filósofo Indígena, que se inicia Guerras do Brasil, mais uma série exibida pela Netflix, que tem como primeiro episódio As Guerras da Conquista. Narra a epopeia sangrenta da ‘conquista’ do Brasil, um mito de origem que tem como pano de fundo a escravidão indígena, o genocídio, a extinção, legitimados, a princípio, pela Igreja Católica sob a tenra desculpa de salvar a alma dos gentios que resistiam ao avanço do império cristão. É esse “feito heroico” que dá margem ao possível maior holocausto populacional que conhecemos, cujas manchas de sangue até hoje regam o solo brasileiro, e deixaram um legado: a pequena era do gelo.

A invenção do Brasil

Colonizadores europeus celebravam a descoberta do Novo Mundo, deslumbrados pela riqueza que a nova terra prometia, ignorando os verdadeiros donos: indígenas de diversas etnias, com modos de organização e concepções cosmológicas distintas, e que não tinham ideia do processo de aculturação que iriam vivenciar. Era um cenário de guerra e extermínio que, a princípio, teve o aval da igreja católica e se refletiu em ações violentas direcionadas à incorporação da cultura dominante, levando os nativos tanto à morte cultural quanto à biológica.

“A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto”, assim atesta a Carta de Pero Vaz de Caminha ao el rei Dom Manuel, datada de 22/04/1500. Descreve a chegada das caravelas, a missa em Monte Pascoal, os presentes entregues aos nativos. Para Ailton Krenac, é um mito de origem do Brasil já que, na verdade, “o que os índios fizeram foi socorrer brancos flagelados chegando na nossa praia”.

colonização brasileira: do genocídio à Pequena Era do Gelo

Segundo o documentário da Netflix, entre 8 e 40 milhões de habitantes viviam no Brasil. Assim, ignorando a autonomia e a identidade desses povos, iniciou-se um processo de invasão que regou de sangue o solo brasileiro, em uma época marcada por massacres, desapropriações, fugas, escravidão. O historiador Pedro Puntoni assim explica: “A escravidão se deu com as guerras justas. Se os indígenas se recusam à fé, são contrários à fé, portanto, é justo guerreá-los”. Escravizavam indígenas para salvar a alma deles.

O canibalismo era associado a uma prática demoníaca que carecia de intervenção salvadora. “A igreja católica tentou evangelizar e muitos eram mortos, proibidos de falar a língua”, afirmou Sonia Guajajara, líder indígena. O europeu veio para arrancar as riquezas através do uso da força, matando e eliminando etnias, semeando uma civilização que se enquadrasse eu seu universo mítico.

Outros interesses também associados à conquista de terras contribuíram para essa atmosfera de terror. O Massacre do Paralelo 11, em 1963, que vitimou 3.500 indígenas da etnia Cinta-Larga, em ataques que incluíram envenenamento (inclusive com participação de funcionários do Serviço de Proteção aos Índios – SPI), assassinato em massa, tortura, guerra bacteriológica, abuso sexual, grilagem e suborno. O Massacre de Haximu, em 1993, praticado por garimpeiros que mutilaram e assassinaram 16 Yanomamis, refletem o legado da era da colonização, divulgado em relatórios, como o Relatório Figueiredo, e obras que ganharam notoriedade nos veículos de comunicação.

Dados do MEC, colhidos pelo etnólogo Curt Nimuendaju e apresentados em seu mapa etno-histórico, assinalam a existência de cerca de 1400 povos indígenas no território que correspondia ao Brasil do Descobrimento. Esse número reduziu consideravelmente por conta dos massacres. Mas, segundo a FUNAI, nas últimas décadas do século passado, o contingente indígena cresceu consideravelmente. Dados do censo do IBGE realizado em 2010 estimam a existência de 817.963 indígenas, representando 305 diferentes etnias.

A construção da BR-174, que liga Manaus a Boa Vista serviu de palco para um desses cenários de extermínio e trouxe à tona, por meio do Relatório da Comissão Nacional da Verdade, relatos impressionantes que revelaram o exercício de uma política genocida, em função de projetos políticos e econômicos da Ditadura Militar.

A Comissão Nacional da Verdade foi criada com o objetivo de investigar os casos de violação dos direitos humanos ocorridos entre o fim da ditadura de Getúlio Vargas até a promulgação da Carta Magna de 1988. Entre eles, os ocorridos durante as construções de estradas que fizeram parte do Plano Nacional de Integração (PIN), instituído pelo presidente Emílio Garrastazu Médici.

BR-174: Um genocídio sob o ronco da Ditadura Militar

“Por que kamña (civilizado) matou kiña (a gente)? Foi essa a indagação feita nos anos de 1985 por indígenas da aldeia Yawará, Sul de Roraima. O termo “Kiña” é uma outra denominação para os Waimiri-Atroari.

Refere-se aos episódios daquilo que foi, segundo Altino Berthier, autor do livro O Pajé da Beira da Estrada, “o palco da maior matança de índios que já houve na Amazônia”: a construção da BR-174.

Em 05 de setembro de 1967, sob o comando do Coronel Mauro Carijó, iniciou-se a construção da estrada que ligaria Manaus a Boa Vista, atravessando a terra dos Waimiri-Atroaris. Segundo a FUNAI, estima-se que, na década de 70, eram 3000 indígenas dessa etnia, no sul de Roraima e Nordeste do Amazonas; reduzidos a 350 na década de 80. Esse povo sucumbiu aos violentos ataques vividos ao longo da rodovia. Nas palavras de Apoena Meirelles: “Os Waimiri-Atroaris tombaram no silêncio da mata e foram sutilmente enterrados e esquecidos no espaço e no tempo”.

Em seu livro O Pajé da Beira da Estrada, o Coronel Altino Berthier, que participou das ações do exército brasileiro, assim registrou: “pude presenciar a reação violenta daquele povo ante a desestruturação de sua célula familiar e de seu universo telúrico”. E continua: “cansei de ouvir gemidos pungentes e soluços anônimos, verdadeiros clamores de misericórdia daquela gente que me parecia condenada a um triste e melancólico fim”.

Relatos colhidos por Egydio Schwade e apresentados no Relatório da Comissão Nacional da Verdade endossam essa atmosfera de terror: “A festa já estava começando com muita gente reunida. Pelo meio dia, um ronco de avião ou helicóptero se aproximou. O pessoal saiu da maloca pra ver. A criançada estava toda no pátio pra ver. O avião derramou um pó. Todos menos um foram atingidos e morreram […] Os alunos da aldeia Yawará forneceram uma relação de 33 parentes mortos neste massacre”, assim descreve o relatório.

Em meio a resistências, abandonos de terras, genocídio, mortes por epidemias, envenenamento, assassinatos, a estrada foi oficialmente inaugurada em 06 de abril de 1977. “A BR-174 estava em festa”, assim afirma Altino Berthier. Deixou um legado de mais de 2000 mortos e um impacto social e ambiental que se refletiriam sobre as gerações vindouras. Mas, tudo em nome do progresso. O genocídio foi reconhecido como crime no Brasil a partir da Lei No. 2.889, de 1956, e, pelo visto, ignorado.

Legado do Genocídio: A Pequena Era do Gelo

Em 1492, período que antecede a chegada dos Europeus às Américas, estimava-se uma população de 60,5 milhões de nativos no continente americano. Em apenas 100 anos, com a ação dos conquistadores regadas por genocídio, doenças, guerra, escravidão essa população reduziu para 5 ou 6 milhões. Foram aproximadamente 56 milhões de mortos. Assim conclui o estudo de cientistas da University College London (UCL), no Reino Unido.

O estudo da University College London publicado na Revista Quaternary Science Reviews e divulgado por vários veículos de comunicação mostra que esse extermínio provocou uma Pequena Era do Gelo. Os indígenas abandonaram uma área de 56 milhões de hectares, antes utilizadas para agricultura e moradia. Com o tempo, essa área foi reflorestada, o que elevou os níveis de dióxido de carbono na atmosfera, resultando na queda de temperatura da Terra, deixando-a mais gelada.

Para realizar o estudo, foram combinados dados demográficos, históricos, arqueológicos e realizadas análises de carbono. Questionou-se qual seria o impacto no clima do planeta se uma vasta área ficasse inativa e fosse naturalmente reflorestada. Resultado: o extermínio de indígenas afetou o clima da Terra, diminuindo a temperatura média do planeta no século seguinte.

A mesma pesquisa demonstra que a diminuição dos níveis de CO2 foi detectada em núcleos de gelo na Antártida. Esse gelo retém o gás atmosférico e pode revelar quanto dióxido de carbono estava na atmosfera há séculos. “A única maneira de a Pequena Idade do Gelo ter sido tão intensa foi por causa do genocídio de milhões de pessoas”, disse Maslin, co-autor da pesquisa, à CNN.

No Brasil, o número de vidas ceifadas somente no período da Ditadura Militar equivale a 8.350, segundo dados do Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Mais de 2.000 na construção da BR-174, e muitos outros nos demais massacres que ocorreram. “Desapareceu boa parte da humanidade em 100 anos. Talvez tenha sido um dos maiores holocaustos populacionais de que a gente tem notícia”, afirma o Antropólogo Carlos Fausto. Ecocídio e etnocídio evidentes. Só poderiam resultar em graves consequências ao meio ambiente.

A Guerra Contínua da Colonização no Brasil.

“A história da colonização é a história da conquista contínua, da guerra contínua”, afirmou Ailton Krenak. No Brasil, as agressões às diversas etnias, iniciadas com a colonização, continuam alimentando as páginas de uma história de política genocida que dizimou vários povos e se perpetua sob a égide de uma legislação ineficiente.

Há uma velada proteção à política capitalista-desenvolvimentista que devasta a cultura dos povos originais e alimenta esse crime, fato evidente, divulgado pela mídia, nas constantes lutas dos índios para efetivação das leis e garantias de seus direitos. Para a historiadora Marcia Eliane Alves de Souza e Mello essa é uma questão complexa.

“Ainda que não fosse uma ideia homogênea, os avanços foram possíveis. A ineficiência da legislação só demonstra a questão política que nela está envolvida. Assim como no passado, erroneamente se pensou que legislação oscilava porque ora dava liberdade, ora tirava a liberdade indígena. O que temos hoje são interesses antagônicos que se valem do mesmo recurso legal para defender suas posições”, afirmou Marcia.

Para Ailton Krenac, “A guerra é um estado permanente da relação entre os povos originários daqui, que foram chamados de ‘os índios’ sem nenhuma trégua até hoje”. O SOS das populações indígenas ainda ecoa no momento atual, mesmo havendo uma legislação direcionada à proteção e direito desses indígenas que, a exemplo dos Waimiris-Atroaris “preferem morrer de pé a abandonar o santuário milenar”, que alimenta suas tradições, como afirmou Altino Berthier em seus relatos durante as incursões na BR-174.

Assim, para os indígenas, a guerra é um estado constante, bem como a invasão de suas terras. “Nós estamos sendo invadidos agora”, afirma Ailton Krenak. Que assim finaliza: “Enquanto o poder público não toma uma decisão, abre-se espaço para a violência”.

Rosângela Lira – amazonianarede

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