Bullying: a violência real no cotidiano escolar

As vítimas são crianças e adolescentes mais retraídos

Rosangela Portela

“Os colegas me xingavam, falavam que o meu cabelo era ruim, diziam que eu não era inteligente e que eu cheirava mal. Não me aceitavam. Eu ficava triste e me afastava da turma”, relata Thayane Maia. A ex-aluna da rede pública é uma das vítimas da violência que habita o cotidiano escolar, o bullying. Dados do último Relatório (2018) do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) apontam que três em cada dez alunos de 15 anos no Brasil afirmam sofrer bullying nas escolas, o que corresponde a 29%, percentual que está acima da média dos países membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) que é de 23%.

Recorrente em escolas, o bullying consiste em um conjunto de brincadeiras maldosas, apelidos, ameaças, insultos, intimidações que agridem a criança ou o adolescente. Quando ocorre de forma contínua, o bullying pode causar danos físicos e psicológicos nas vítimas. A pedagoga Viviane Cavalcante, servidora da Escola Estadual Benjamin Brandão, afirma que o aluno, alvo de bullying, passa a apresentar baixo rendimento, apatia às aulas e isolamento, e que uma das formas mais comuns é o cyberbullying que ocorre nas redes sociais. Ela destaca que a melhor forma de a escola combater a prática é por meio de campanhas de sensibilização e aplicação de medidas preventivas e punitivas constantes no regimento escolar.

“Um grupo de meninas, alunas do 7° ano, idade entre 13 e 14 anos, criou um perfil em uma rede social chamado ‘pirentas e fedorentas’ onde eram postadas fotos de alunas e comentários com conteúdo pejorativo. Chegamos até o grupo, convocamos os pais, orientamos as alunas e punimos com advertência e transferência”, relatou.

Considerado uma questão de saúde pública, o bullying atinge crianças e adolescentes com perfil tímido, introvertido e com habilidades sociais mais fracas. A psicóloga Adriana Andrea complementa que, apesar de muitas vezes ser tratado como uma ‘brincadeira’, consequentemente o bullying pode afetar a construção da personalidade de quem está sofrendo, ocasionando baixa autoestima, ansiedade, depressão. “O bullying pode passar despercebido na escola ou na família por ser confundido com uma brincadeira, mas é uma forma de agressão contra a dignidade do outro”, disse.

A especialista traçou um perfil das vítimas do bullying e destacou as consequências na vida de quem sofre essa agressão que, muitas vezes, é incentivada pelos próprios professores ao atribuir um apelido ao aluno. Ou até pela família, por desconhecimento do assunto.

“As ‘vítimas’ são crianças e adolescentes mais retraídos, tímidos, introvertidos, com repertório de habilidades sociais mais fraco e, principalmente, com características físicas que acabam complementando esse perfil: altura, peso, uso de óculos ou aparelho, tipo de cabelo, cor da pele, espinha, deficiência física ou qualquer aspecto que fuja do ‘famoso’ padrão de beleza. Há também as ‘vítimas provadores’ que provocam nos colegas reações agressivas contra si mesmos, utilizando-se de suas características físicas. Aceitam as brincadeiras e o bullying, conseguem se defender, mas as respostas são insuficientes para afastar o agressor. As ‘vitimas agressores’ são  crianças e adolescentes que um dia sofreram bullying e, hoje, tornam-se os praticantes. Também o “expectador”, que é o que testemunha o bullying, não o aceita, mas não tem coragem de denunciar para não ser taxado como o x-9”.

O sofrimento das vítimas 

Sendo uma violência real no cotidiano escolar, as consequências da prática contínua do bullying ainda são visíveis para a universitária Ana Letícia Silva, que, durante anos, sofreu com piadas sobre sua aparência, agressões, rejeição e assédio em ambiente escolar.

“Os dias de aula eram infernais. Cedo, recebi o apelido de ‘João’, pois meu cabelo era curtinho. Na 1ª série, meu cabelo foi cortado pela colega que sentava atrás de mim. Recebi depois o apelido de espantalho, por ser ‘feia e esquisita’. Eu me sentia acuada, agredida e insuficiente. Na 7ª série, fui trancada na sala por dois garotos, pois eles disseram que queriam ir lanchar com ‘gente normal’. Procurei a coordenação da escola, mas nada fizeram. A psicopedagoga disse que não acreditava em mim. Tudo isso afetou meu desempenho”, conta.

Ela afirma que somente ao mudar de escola e ser bem acolhida pelos novos profissionais, foi que começou a reagir a essa agressão, mas que, até hoje, convive com as consequências do bullying. “Ainda hoje, enfrento a autoestima baixa, o pavor à rejeição, sem falar na ansiedade e depressão. As sequelas que o bullying deixa, seja em mim ou em qualquer pessoa, são destrutivas”, completou.

A estudante Thayane Maia também sentiu na pele a ineficácia da direção escolar ao denunciar o bullying, que se arrastou do ensino fundamental até parte do ensino médio.

“Eu ouvia os xingamentos todos os dias. Eu me sentia muito mal, afastada da turma. Eu tinha poucos amiguinhos por causa disso. Eu ficava meio no canto e me sentia só”. Hoje, consigo lidar melhor com isso. Fiz acompanhamento psicológico, mas ainda enfrento esse problema. Já abalou muito, mas atualmente não”, relata.

Thayane conta, ainda, que não havia projetos na escola para combater o bullying, e que a prática era vista como algo normal. “Mesmo que doesse e fosse triste, a gente aceitava porque era tido como normal, uma bagunça entre amigos”, completa.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.060/90, dispõe de medidas para combater o bullying quando traz como princípio basilar a proteção integral da criança e do adolescente, sobre qualquer forma de violência.

O advogado e Presidente do Conselho Municipal do Direito da Criança e do Adolescente CMDCA, em Careiro da Várzea, Dr Deyvison Lima de Souza, afirmou que “o bullying praticado contra criança e adolescente pode ser consubstanciado como ato infracional, uma vez que essa prática pode se subsumir a diversos crimes.

Relatou a situação de uma aluna e as medidas tomadas para combater essa violência. “Aos 14 anos, ela sofria bullying por parte do professor de Educação Física. Ele a chamava de gorda, feia e afirmava que ela não conseguiria um marido. A aluna começou a se cortar, a se mutilar e deixou de ir à escola. O Conselho Tutelar tomou ciência das mutilações e encaminhou o caso para o Conselho Municipal que orientou que dessem prosseguimento e encaminhassem para o CRAS para a adolescente ser acompanhada pela assistente social e pela psicóloga. Foram realizadas entrevistas com a aluna e os pais. Descobriram que a prática de mutilações era por conta do bullying.”

Informou que o professor foi afastado da escola e do cargo. Hoje, a adolescente, com 17 anos, retornou à rotina, mas não deixou de sofrer com os traumas. “O bullying é pernicioso, maltrata, destrói psicologicamente a vida de uma criança ou de um adolescente, principalmente quando é exposto a esse constrangimento público perante terceiros, e por alguém que deveria zelar pela educação, pelo respeito em sala de aula, por isso a capacitação dos professores é tão importante”, completou.

Complementa que a comunidade, por meio de seus representantes, tem responsabilidades de criar políticas públicas para combater o bullying; criar programas de auxílio à família, à criança e ao adolescente; elaborar materiais didáticos sobre o assunto; buscar formar educadores capacitados para trabalhar nesse ambiente, destacando a importância do respeito ao próximo. “Quando a criança não tem base no lar, é necessário que o poder público não supra, mas diminua essa necessidade”, afirma.

Segundo o presidente do Conselho Municipal, hoje, existe uma parceria entre o CMDCA e as escolas municipais do município, através do Conselho Tutelar que realiza visitas periódicas em todas as escolas do município, levando palestras e, em alguns momentos, psicólogos. Membros do Conselho acompanham para estarem esclarecendo às crianças e aos adolescentes a respeito de abuso sexual, bullying e outros temas que acabam sendo uma realidade muito cruel no interior pela falta de informação. Círculos de debates são feitos visando conscientizar as vítimas quanto aos mecanismos de defesa para proteger os seus interesses.

Parceria escola e família

É fundamental que os profissionais de educação tenham um olhar atento e diferenciado para cada indivíduo e que sejam feitas as intervenções necessárias. O bullying denigre a imagem da criança, fazendo-a se isolar ao ficar envergonhada. Assim explica Ruth Brandão, diretora do Instituto de Ensino Thiago Brandão de Oliveira. E complementa: “A melhor forma de ajudá-la é dar atenção, amor, aplicar a pedagogia do afeto”.

A parceria escola e família é essencial na prevenção ao bullying. Nelly Falcão de Souza, diretora do Colégio Martha Falcão, destaca a importância dessa integração para o desenvolvimento do aluno.

“Não só nas escolas devem ser trabalhados conteúdos socioemocionais na prevenção do bullying, mas também na família, pois, às vezes, esse processo ocorre em casa. Quando acontece na escola, e os pais são chamados, reagem de forma diferente quando o filho é vítima ou quando é o que provoca. A mediação da escola se torna desafiadora”, afirma.

Projeto de Lei

Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro vetou um Projeto de lei, que havia sido aprovado pela Câmara dos Deputados, e tornava obrigatória a contratação de psicólogos e assistentes sociais em escolas públicas. Alegou que o projeto criaria uma “despesa”, o que contrariou setores da área da educação e psicologia que aprovavam o PL e viam essa obrigatoriedade não como despesa, mas como investimento na qualidade do ensino.

Uma vez sancionada a lei, as escolas públicas, que atendem da pré-escola ao ensino médio, teriam o prazo de um ano para incluírem assistentes sociais e psicólogos no seu quadro de funcionários. Essa equipe multiprofissional deveria desenvolver ações voltadas para a melhoria da qualidade e do processo de ensino-aprendizagem, com a participação da comunidade escolar, atuando como mediadores nas relações sociais e institucionais.

 

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