CRÔNICA: A mão que ‘fala’

Rosângela Portela

Não sei se em família de rico era assim, mas, na minha família, se tinha um dia especial era o dia de finados. Aquela muvuca danada.Todos procurando a melhor roupa para visitar os mortos e os vivos. Sim, porque era um acontecimento. Talvez único dia em que conseguíamos reunir toda a parentada.

Um banheiro apenas sendo disputado por aqueles habitantes que, entre tapas e empurrões, buscavam sobreviver naquele ambiente que chamávamos de casa, embora mais parecesse um hospício.

Digo isso porque os brigões nasceram aos pares. Sempre vinha um menina, depois uma menino, e o duelo estava formado. O pau cantava e lá do fundo alguém gritava: “nunca se amaram, não vai ser agora”.

E nessa melodia o instrumento que mais fazia barulho era o cinturão da mamãe. Ah! E doía! Mas, depois, esquecíamos e a porrada comia de novo.

Uma vez prontos, pegávamos o busão sob o olhar atento dos demais passageiros que se assustavam com tamanha euforia. Vez em quando, algum colocava a cabeça pra fora acreditando tratar-se de alguma desavença, tamanha era a confusão que fazíamos.

O entusiasmo era visível, tudo era absolutamente perfeito. Nada conseguia nos tirar daquele transe e impedir aquele encontro esperado: a chegada ao cemitério.

Da descida do ônibus até lá, já desfrutávamos da aventura. Gente gritando “olha a vela!”, “flores, flores!”, barracas de comida, cheiro de banana frita, pastel naquele óleo queimado, puxão de orelha pra um lado, puxada de cabelo pra outro, mas a matriarca não perdia um menino sequer. Em meio àquela multidão, um cuidando do outro, porque nascemos de escadinha, mas ninguém se perdia.

Como era sempre uma sepultura para enterrar vários membros da família, eram poucas as que tínhamos pra visitar.  Quando víamos já estávamos todos no mesmo lugar. A parentada toda presente. Que festa! E momento de fazer novos amigos.

Foi assim que desfrutamos algumas horas da presença dele, que não sabíamos o nome, mas que se aproximou de nós e se divertiu com nossas brincadeiras. Um grupo seleto, com idade de quem podia sair de perto da mãe, fez um city tour com esse colega que já parecia da família de tão à vontade que estava.

Cheiro de café. Era o lanche que a parentada fazia questão de comer pra celebrar aquele encontro. De vez em quando, caía uma manga no chão. Eu não comia nem com nojo! Manga de cemitério?! Na hora do banquete, aquele pequeno grupo aproveitava para fazer as travessuras e visitar o cruzeiro.

Entre uma brincadeira e outra, risos, chutes e palavrões, nós nos divertíamos, e o colega sem nome também acompanhava aquele circo de loucuras. O cansaço bateu. Quase hora de ir embora.

Nesse momento, nosso mais novo amigo nos convidou para acompanhá-lo em uma última visita. Mal viramos as costas, ouvimos aquele grito de “não!”. Nem pensar em desobedecê-la. A surra em casa era certa.

Tivemos que nos despedir. Ele saiu andando. Perguntamos para onde ia. Ele respondeu que ia pra casa. “Eu moro naquela sepultura que tem a forma de mão”. Virou as costas e seguiu.

Nem consigo descrever a expressão dos outros irmãos, só sei que da forma como minhas pernas tremiam, não conseguia dar um passo. Faltava a respiração e ninguém olhava nem para o lado de tão estarrecidos que estávamos.

Quando o oxigênio voltou, nenhum quis levar a dúvida para casa. Ignorando a peia, corremos até a tal sepultura. E, para nossa surpresa, nela estava a foto do garoto com quem passamos bons momentos a tarde toda.

Desde o dia em que aquele morador da sepultura em forma de mão falou com a gente, nunca mais o dia de finados foi o mesmo. Não só porque saímos como mentirosos, mas também porque aquela imagem da mão não saía da nossa cabeça.

Até hoje, em visitas ao cemitério, o que acontece de forma rara, olhamos para aquela mão e lembramos do dia em que ela falou conosco. Quisera eu estar mentindo, mas esse episódio mudou nossas vidas. Sempre voltamos pra casa com a sensação de que aquela história não terminou.

E como eu não quero que ela continue, eu aqui me silencio.

@amazonianarede

 

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