Capital deixou de ser cidade maquete e é desigual como o Brasil
Beasilia – No dia em que Brasília completa 59 anos, a economista Jane Pias de Oliveira recorda-se da liberdade que tinha para brincar na cidade quando era menina (9 anos), nos primeiros anos da capital federal. “A gente ia para o zoológico de bicicleta. E sabe por onde a gente andava? Naquela faixa do meio do Eixão”, conta à reportagem da Agência Brasil.
Jane morava na quadra 712 sul, a sete quilômetros do Jardim Zoológico, e fazia com seus colegas da rua um passeio impensável para os dias atuais no Eixo Rodoviário, por causa do intenso tráfego a 80 km/h (velocidade autorizada).
A economista nasceu em outubro de 1958, no antigo Hospital Juscelino Kubitschek de Oliveira, o primeiro do Distrito Federal, hoje Museu Vivo da Memória Candanga, no Núcleo Bandeirante. “Na minha certidão de nascimento está escrito ‘nascida em Brasília (futura capital federal)’. Eu nasci numa cidade que não existia ainda”, afirma.
O filho de Jane, o estatístico Carlos Eduardo de Oliveira Varanda (38 anos), também não esquece os passeios de bicicleta na infância. “Andava de bicicleta o Lago Norte inteiro [cerca de nove quilômetros de extensão] e não avisava à mãe”.
Carlos Eduardo ainda lembra de subir em árvore, pescar no Lago Paranoá e até encontrar bichos, como pequenas cobras, que dividiam o cerrado com casas que habitavam o bairro, hoje praticamente todo urbanizado e construído. “Tinha vida de roça na cidade”, rememora.
Mãe e filho são da primeira e segunda gerações de brasilienses. Aquelas que usufruíram da cidade crianças e adolescentes até os anos 1980, e tiveram o privilégio de viver em um centro urbano ainda não densamente povoado, com pouco trânsito e seguro para as meninos e meninas brincarem livremente.
O pequeno Alexandre (3 anos), da terceira geração de brasilienses, neto de Jane e filho de Carlos Eduardo, jamais terá a liberdade que sua avó ou seu pai tiveram em tempos idos na capital.
“Se minha mãe deixar meu filho do mesmo jeito que me deixava, eu vou ficar preocupado”, admite Carlos Eduardo. “Era mais tranquilo. No trânsito a gente se deslocava rapidinho”, conta Jane que, além de criar Eduardo e mais dois filhos, ainda trabalhava em um banco e estudava na Universidade de Brasília (UnB).
“Nós tínhamos mais segurança para deixar os filhos brincarem na rua. Hoje temos que ir junto”, compara Jane. O veterinário Luís Fernando de Oliveira Varanda (34 anos), também filho dela, tem as mesmas preocupações que o irmão e entretém os seus dois filhos, também brasilienses, em brinquedotecas. “Não temos mais aquela liberdade”, pondera.
Contradições
Menos liberdade por causa de segurança é indicador de que Brasília se tornou uma típica metrópole brasileira.
De acordo com o Mapa da Violência 2018, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a taxa que soma homicídios e mortes violentas com causa indeterminada é de 26,5 casos a cada 100 mil habitantes – acima de São Paulo (14,9 casos), Florianópolis (18) e Vitória (23,1).
Para o urbanista e professor emérito da UnB José Carlos Coutinho, a violência tem a ver com a desigualdade socioeconômica entre o Plano Piloto e as regiões administrativas, e as cidades do Entorno e o DF.
“Temos concentração perversa da mais alta renda per capita do país em zonas elitizadas, circundados por uma periferia onde não há condições dignas de vida”, aponta. Conforme o especialista há 50 anos na cidade, “essa periferia que cerca a ilha da fantasia que cria esse contraste. Daí vêm as cercas elétricas, muros altos e arame farpado”.
“Brasília nasceu saudável, um bebê rosado lindo que a medida que foi crescendo foi ficando com a cara do pai, que é o Brasil. Brasília hoje contém as mesmas contradições, desigualdades e injustiças que tem o país. Brasília não poderia ser diferente do Brasil”, complementa o urbanista.
Dados do Atlas Brasil, recentemente divulgados pelo Ipea, indicam que a renda per capita na região metropolitana formada pelo Distrito Federal e Entorno cresceu 41,88% entre 2000 e 2010, houve redução do percentual de pobres (de 17% para 7,2%) e dos extremamente pobres (de 5,21% para 1,96%).
O Índice de Gini que mede a desigualdade, porém, variou pouco; era de 0,65 em 2000 e foi a 0,64 em 2010. O índice varia de zero a um, quanto mais próximo de zero mais igualitária a renda do grupo. Quanto mais perto de um, maior a concentração de renda.
Conforme a Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), 401 mil brasilienses formam uma elite com renda média domiciliar mensal de R$ 15,6 mil; 922 mil têm renda média domiciliar de R$ 7,3 mil; 1,2 milhão têm renda média domiciliar de R$ 3 mil; e 307 mil têm renda média domiciliar de R$ 2,4 mil.
“Ocupação anárquica”
Além da desigualdade e da insegurança, José Carlos Coutinho lamenta que a ocupação do DF se deu de forma “anárquica” e que os diversos governos não fizeram planejamento, resultando em ocupação indevida de terras e devastação do cerrado.
“A cidade veio tropeçando num processo de crescimento alarmante. O futuro nos reserva muitas incertezas. Brasília vai acabar sendo um centro histórico cercado de pobreza por todos os lados”, alerta o urbanista.
A cidade ocupa o quarto lugar em número de automóveis. Conforme o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), há 1,29 milhão de carros emplacados em Brasília – abaixo apenas de São Paulo (5,75 milhões), Rio de Janeiro (2,04 milhões) e Belo Horizonte (1,44 milhão).
O volume de carros é tão grande em Brasília que seria possível colocar todos os habitantes nos automóveis e ainda sobrariam lugares. Segundo projeção do IBGE, Brasília tem 3 milhões de habitantes. Dividindo um indicador pelo outro, chega-se à média de 2,3 pessoas por carro registrado na cidade.
Luís Fernando e Eduardo de Oliveira evitam o trânsito candango morando em superquadras do Plano Piloto, próximas ao trabalho. A mãe deles, Jane, mudou-se há seis meses para Águas Claras, um bairro de classe média alta com prédios de mais de 30 pavimentos, na região administrativa de Taguatinga (antigamente denominada de cidade-satélite).
A noite da espera
Aposentada, Jane foge do trânsito evitando as horas de congestionamento. E, sem se apegar ao passado, aprecia a Brasília de 2019. “Não sou saudosista, gosto de lembrar de algumas coisas. Eu adoro Brasília, acho linda, tem qualidade de vida ótima. [Nos últimos anos], melhorou em urbanização e vida noturna.”
O escritor Milton Hatoum, autor de Dois irmãos, Cinzas do Norte e A Noite da Espera, o último com história ambientada em Brasília no final dos anos 1960, também elogia a Brasília atual. “A cidade ficou verde”. Em sua opinião, a capital não tem mais “a tristeza e a tensão” que são tratadas no seu último livro.
Algumas angústias da trama, Hatoum experimentou. Veio de Manaus para a cidade com 15 anos, longe da família, para estudar o “colegial” no extinto Centro Integrado de Ensino Médio (Ciem), colégio de aplicação então vinculado à UnB. Nos momentos de solidão, conta que contemplava o Lago Paranoá ou ia ver a Igrejinha.
“A cidade estava começando, tinha pouquíssimas árvores e muito barro. Era um cerrado destruído para a construção da cidade”, descreve. O escritor também ia ao Poço Azul. Passeios a cachoeiras nos arredores da nova capital são mencionados no livro e marcados na memória de Hatoum, assim como lugares símbolos da então jovem cidade: a Livraria Encontros, a Pizzaria Kazebre 13, que já não existem mais, o Restaurante Roma e oBbar Beirute, ainda em funcionamento.
O superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Carlos Madson Reis, que vive em Brasília desde 1972, evita espírito nostálgico quanto à quietude da cidade.
Sem negar os problemas apresentados na capital, que faz aniversário neste domingo (21 de abril), ele diz que o Plano Piloto se assemelha até hoje à proposta original de Lúcio Costa, que foi modificada desde o início com alterações como a criação das quadras 400 e 700, a aproximação da área urbana ao lago e a extensão do Eixo Monumental.
Madson Reis avalia que Brasília deixou se ser maquete e que a terceira geração da cidade ocupa “de maneira diferente” o espaço urbano. “Faz uma apropriação menos sacralizada e mais humanizada.
Procura se apropriar dos espaços de uma forma mais lúdica. Menos simbólica e mais intensa”, acrescenta.
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