Da série Direito e Literatura, pretende-se aqui estabelecer a estreita relação que há entre as duas ciências, ilustrando, com obras literárias consagradas, os conceitos jurídicos inseridos nos textos de ficção. Uma boa leitura e uma boa viagem jurídico-literária!
Rosângela Portela
DIREITO E LITERATURA: estreita relação entre Ciência Jurídica e Teoria Literária
Não é de hoje que o tema Direito e Literatura tem se destacado como assunto de grande relevância entre aqueles que atribuem à Literatura uma nova possibilidade para o ensino jurídico, uma vez que esta é permeada por narrativas históricas que evidenciam os mais diversos comportamentos sociais, com atores e cenários reveladores do Direito.
Na Ciência Jurídica, desenvolve-se um processo judicial de aplicação efetiva da norma abstrata à norma concreta, por meio de uma caracterização permeada em um processo hermenêutico de interpretação da norma jurídica.
Na Teoria Literária, seguindo a linha descritiva, teorizam-se os aspectos literários, buscando compreender a literatura e seus meandros, concedendo ao escritor total liberdade na criação.
A Ciência Jurídica torna o direito viável. Ora, se o direito é um fenômeno social, a ciência jurídica também tem a sua função social. Para Maria Helena Diniz (1988) a ciência jurídica exerce funções relevantes não apenas para o estudo do direito, como também para a aplicação jurídica. Torna o direito viável como elemento de controle do comportamento humano. Permite flexibilidade interpretativa das normas e propicia adequação das normas no momento de sua aplicação.
A Teoria Literária estuda a literariedade, a evolução literária, os períodos da literatura, os gêneros, a narratividade, os versos, sons e ritmos, as influências exteriores sobre a produção literária, entre outros aspectos desta disciplina.
Para Aristóteles, em sua obra A Poética, a “arte é imitação” (…) o imitar é congênito do homem (e nisso difere dos outros viventes, pois de todos, é ele o mais imitador e, por imitação, aprende as primeiras lições(, e os homens se comprazem no imitado .
Nesse sentido, vê a arte como recriação. E diante da normatização do Direito, a Literatura permite-nos quebrar as regras inflexíveis, permite a libertação do cárcere, das amarras positivadas, ignorando tempo e espaço, é um lugar “onde podemos cometer excessos sem castigo e desfrutar de uma soberania sem limites”, segundo Mário Vargas LIosam, escritor peruano.
Diante da rigidez jurídica, do universo técnico, os textos literários têm permitido uma visão mais humana que possibilita o estreitar da relação entre as duas ciências, Ciência Jurídica e Teoria Literária, bem como favorece a assimilação da norma jurídica, evidenciada em comportamentos típicos, reveladores de determinada cultura, e em espaços, ilustradores de determinada sociedade.
Em síntese, pode-se dizer que ao Direito reservou-se a normatização técnica, direcionada ao objetivismo, e à Literatura, a atmosfera estética, carregada de subjetivismo.
A estreita relação
Embora cada uma dessas ciências esteja revestida de características intrínsecas, é inegável que podem trocar informações capazes de levar o indivíduo a construção do conhecimento e a compreensão das concepções jurídicas.
A Literatura figura como um instrumento, seja para o aplicador do direito, seja para o leigo, pois possibilita um espaço crítico de reflexão, de onde se podem extrair respostas para os mais diversos conflitos concretos da realidade.
É exatamente por essa aura estética inerente à Literatura, por esse campo fértil de seres com as mais diversas personalidades, por essas narrativas carregadas de conflitos que, embora fictícios, tornam-se tão reais, por essas utopias tão possíveis no campo da imaginação que houve a motivação para a realização dessa pesquisa.
Acredita-se que a Literatura é um instrumento eficaz no ensino do Direito, a concretização dos conceitos jurídicos, no entendimento da normatização, visto que ilustra em casos concretos, e é mais sensível às especificidades humanas; isso favorece a compreensão por parte de quem não domina o Direito.
A origem da relação entre Literatura e Direito
Literatura e Direito guardam uma certa relação desde a antiguidade. Embora com o passar dos anos a estruturação dessas ciências as tenham distanciado, os antigos laços ainda permitem que sejam estreitadas essas relações. Godoy (2008) observa essa relação “desde tempos remotos na tradição ocidental”, em artigo intitulado “Os pais fundadores do direito e literatura”.
De acordo com François Ost, há uma origem comum entre poesia e Direito. Há diversas proximidades históricas como a lei romana das XII Tábuas terem sido expressas em versos adônicos, estilo imitado por Cícero. Em 1607, Loisel em suas Institutas consuetudinárias recolhe 908 máximas dispostas por rimas e alterações devido a proximidade do justo com o belo. Na época clássica havia semelhança ao estilo jurídico e a escrita literária; homens de letras e homem das leis estavam próximos, as vezes exercendo as duas ao mesmo tempo.
É importante assim definirmos então essas ciências para encontrarmos os laços que as unem, e que permitem que se auxiliem na produção do conhecimento, oferecendo, uma a outra, subsídios para formulação de conceitos e ampliação desses.
Definições
A Literatura é entendida como a arte do inimaginável. “(…) é um fenômeno estético. É uma arte da palavra. Não visa a informar, ensinar, doutrinar, pregar, documentar. (…) O literário e o estético incluem precisamente o social, o histórico, o religioso” que, nas palavras de Afrânio Coutinho, transformam-se em estético. Para Barthes, o texto literário é “um Monumento” capaz de incorporar as demais imagens.
Antonio Cândido afirma que “A Literatura, como toda arte, é uma transfiguração do real, é a realidade recriada através do espirito do artista e retransmitida através da língua para as formas, que são os gêneros, e com os quais ela toma corpo e nova realidade (…) O artista literário cria ou recria um mundo de verdades que não são mensuráveis pelos mesmos padrões das verdades factuais.
Já o Direito tem sido entendido como um conjunto de normas que regula o comportamento humano numa determinada sociedade e numa determinada época. Para Miguel Reale, significa tanto esse ordenamento jurídico “que traça aos homens determinadas formas de comportamento, conferindo-lhes possibilidades de agir, como o tipo de ciência que o estuda, a Ciência do Direito ou Jurisprudência.”.
A Literatura como a arte do inimaginável, da liberdade criadora, observa o Direito, em uma de suas dimensões, como um campo fértil para a criação literária, favorecendo o roteiro para a criação das narrativas que vêm carregadas de conceitos jurídicos que ajudam a compreender o Direito.
O Direito em si não visa o estético, como a Literatura, mas sim definir condutas lícitas ou ilícitas, estas últimas sujeitas a sanções previstas no texto normativo. E a Literatura propõe essa flexibilidade na assimilação desse ordenamento, por meio de narrativas que ilustram determinadas situações previstas em lei, e de personagens que adotam certas condutas previstas como ilícitas.
É por meio da Linguagem que a Literatura e o Direito acontecem, no entanto, a linguagem literária é poética, repleta de ornatos, simbologias, mas de fácil compreensão por leigos, com ampla liberdade a possibilidades; já a linguagem jurídica é normativa, definidora de regras de comportamentos e condutas, nem sempre de fácil compreensão, daí a importância da exploração desses conceitos jurídicos em obras literárias.
Segundo Antônio Candido, “Cada ciência exprime-se numa linguagem. Dizer que há uma Ciência Física é dizer que existe um vocabulário da Física.” Nesse entendimento, alguns autores modernos entendem que a ciência é a linguagem mesma, por meio da qual são expressos dados e valores comunicáveis.
Atualmente, busca-se uma visão mais humanista do Direito, de modo que as concepções jurídicas estejam inseridas em um cenário mais plural e democrático. A contribuição das outras ciências é de grande valor ao Direito nesse contexto, visto que refletem os acontecimentos sociais e históricos vividos pela sociedade, permitindo a ciência jurídica dai extrair elementos para a
Nessa seara, é imprescindível a utilização da Literatura como ferramenta para a compreensão dos fatos sociais e da lei, visto que suas narrativas sempre envolvem cenários históricos que refletem a realidade da sociedade. Ela (a Literatura) é um instrumento que auxilia a interpretação da realidade e a aplicação da norma de forma mais justa.
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