Unidos de Vila Maria homenageia N.S. Aparecida e o samba é abençoado na Basílica

Chegou o dia em que o Samba, foi Aparecida

Aparecida, SP – Na tarde da última terça (21), um Fiat Idea 2010 cruzou a Rodovia Presidente Dutra em direção à cidade de Aparecida, a 170 quilômetros de São Paulo, com dois objetos no porta-malas: um manto de 2,5 metros de comprimento ornado com pedras e uma coroa de ferro de 5 quilos pintada de dourado, produzidos na Fábrica do Samba, no setor da Unidos de Vila Maria.

Na manhã do dia seguinte, eles foram expostos em uma caixa acrílica no altar da Capela de São José, na basílica, e abençoados pelo padre João Batista de Almeida, reitor do local. O trajeto de volta à capital acabou sendo realizado em um carro-forte escoltado por quatro seguranças armados, em esquema idêntico ao do transporte de grandes valores.

Na madrugada deste sábado (25), essas peças serão usadas no desfile da tradicional escola de samba da Zona Norte em homenagem aos 300 anos do encontro da imagem de Nossa Senhora Aparecida.

Elas cobrirão uma réplica da estátua da santa, que, graças a um efeito especial, parecerá flutuar sobre as nuvens em uma alegoria batizada com o sugestivo nome de Carro dos Milagres. Pela primeira vez na história, uma agremiação ganhou autorização (e até ajuda) de membros da Igreja para elaborar um enredo.

Todos os seis carros e os cerca de 3 500 integrantes exibirão alegorias e adereços inspirados em papas, em apóstolos, no Espírito Santo, em Jesus Cristo e, claro, em Nossa Senhora Aparecida, a estrela da festa. Trata-se de um momento de paz na relação entre padres e sambistas, que costuma ser conflituosa.

Em 1989, no episódio mais famoso, a Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro obteve uma liminar que proibia a exposição da estátua de um Cristo Redentor mendigo como abre-alas da Beija-Flor de Nilópolis, então sob a batuta de Joãosinho Trinta.

A alegoria entrou na Sapucaí coberta por uma faixa com a frase “Mesmo proibido, olhai por nós!”. Embora muitos símbolos católicos sejam de domínio público (isso inclui também a imagem da Virgem Maria), a Igreja costuma observar com lupa cada criação dos carnavalescos.

Havendo constatação de abuso, eles podem ser enquadrados em uma lei que pune ofensas a cultos religiosos (pena de até um ano de cadeia, em caso de condenação). A parceria inédita começou a ser engendrada em setembro de 2014.

Na época, o empresário Renato Cândido, que negocia enredos patrocinados para diversas escolas de samba paulistanas, sofria com o fim de um casamento de doze anos. Certo domingo, uma amiga o convidou para levantar o astral em uma missa na Paróquia Santa Luzia, no Mandaqui. “Peguei um folheto e vi que o jubileu de Aparecida seria em 2017”, lembra. “Aquilo me iluminou e enxerguei um samba.” Após pensar um bocado, vislumbrou a Vila Maria como cenário para o projeto.

Entre os motivos, segundo ele, estão suas cores, azul e branca (iguais às do manto sagrado), seu símbolo (a Virgem), a proximidade com a Rodovia Dutra (caminho dos romeiros) e o próprio nome do bairro. Nisto, diga-se de passagem, há um típico exagero carnavalesco.

O nome Maria, da vila da Zona Norte, homenageia a esposa de um antigo proprietário de terras da região. O presidente da escola, Adilson José de Sousa, adorou a ideia e, ao lado de Cândido, liderou a peregrinação em busca do apoio oficial.

Foram seis meses de reuniões para convencer os membros da Cúria Metropolitana de que não haveria deboche nem impropriedades na avenida. Em março do ano passado, conseguiram uma audiência com o cardeal dom Odilo Scherer, que gostou do projeto. Dois dias depois, ele obteve o obrigatório aval dos demais cardeais do país, em um encontro em Aparecida.

Os religiosos viram ali uma boa oportunidade de chamar a atenção das ovelhas desgarradas que perderam a fé. “Em outros tempos, essa parceria não seria vista com bons olhos, mas o papa Francisco nos aproximou do leigo”, diz o padre João Batista de Almeida. Sacramentado o acordo, o enredo ganhou as manchetes já em 2015 — uma quebra na tradição de anunciá-lo um ano antes do desfile.

Coincidência ou não, outras escolas paulistanas também investiram na religião: a Vai-Vai homenageará a mãe de santo Mãe Menininha do Gantois, a Unidos do Peruche abordará Salvador e sua fé e a Rosas de Ouro terá um carro alegórico dedicado a São Cosme e São Damião.

Romaria do samba

A diretoria da Vila Maria contratou o carnavalesco Sidnei França, tetracampeão pela Mocidade Alegre, para transformar carros e alas em uma romaria do samba e, de quebra, atender às exigências da Cúria de banir a nudez e o sincretismo religioso, além de preservar a imagem da santa.

A localização de cada paetê era submetida à supervisão dos padres. Cruzes e outros símbolos religiosos, por exemplo, não puderam ser instalados ao lado de seios ou quadris e foram substituídos por medalhões. Eventuais ajustes nas alegorias eram combinados por meio de troca de imagens e mensagens via WhatsApp.

Nesse processo, dois membros da Igreja atuaram de forma destacada. Um deles foi o próprio reitor da Basílica de Aparecida. Nascido em Tabuleiro (MG), João Batista ouve música sertaneja e é fã de Tonico & Tinoco, Victor & Leo e Daniel (esse último, aliás, é devoto da santa e a principal celebridade a desfilar pela escola neste fim de semana).

O padre confessa que, a princípio, não viu o negócio com bons olhos. “Todos temos preconceitos, na linha ‘escola de samba só tem bicheiro’ ”, diz. “Ao conhecer a turma, desfiz essa imagem.”

Seu colega na missão foi o padre Tarcisio Mesquita, coordenador da pastoral da Arquidiocese de São Paulo e responsável pela Igreja Nossa Senhora do Bom Parto, no Tatuapé. Paulistano da Vila Formosa, ele é outro que não tem relação íntima com os tamborins. “Foi o trabalho mais inusitado de meus 31 anos de ordenação sacerdotal”, define.

Apesar de a maior parte do “monitoramento” ter sido realizada a distância, os dois padres deram o ar de sua graça na quadra da Vila Maria em vários momentos. No último dia 19 de janeiro, no entanto, foi a vez de o próprio cardeal aparecer por lá. Dom Odilo posou para selfies e esbanjou simpatia.

A presença ilustre chegou a arrancar lágrimas de emoção de alguns integrantes da escola. “Os preparativos se deram em clima de perfeita paz”, elogiou o cardeal. Apesar disso, decidiu-se que nenhum membro da Igreja vai desfilar, medida tomada para acalmar católicos mais ortodoxos. Os padres João Batista e Tarcisio estarão no Sambódromo pela primeira vez, mas ficarão em um camarote. Dom Odilo pretende assistir ao desfile pela TV.

Transformação da Vila

A proximidade com os sacerdotes transformou a Vila Maria. Com o objetivo de evitar polêmicas, dirigentes fizeram pedidos informais aos frequentadores, como regular o consumo de bebida e a altura do shortinho e do decote. Um altar foi montado no lugar e uma imagem da santa reforçou a decoração do bar.

No dia 9, a escola recebeu um concurso LGBT, e a imagem de Aparecida localizada no palco teve de ser coberta por uma toalha branca para evitar “ofensas”. Transexuais serão permitidos no desfile de sábado, mas sem posto de destaque em carro alegórico. A “patrulha” velada atingiu até seguidores de outras seitas.

Diretores espíritas, umbandistas e do candomblé comportaram-se de forma mais discreta. “Falamos aos padres que somos todos católicos”, revelou um deles, sem se identificar. Por outro lado, atraídos pela santa, surgiram inúmeros foliões de fiéis de primeira viagem dispostos a ajudar a bancar o desfile.

A conquista do tema

]“O tema me conquistou”, diz o empresário Marcelo Baptista de Oliveira, presidente do Grupo Protege, gigante da área de segurança, que investiu 350 000 reais. “Rezo todo dia e me emociono ao contribuir para essa iniciativa.” Outro a reforçar o caixa da escola foi o professor Antonio Carlos Mingrone, considerado um “papa da iluminação”, que assinou projetos de locais como Maracanã, Masp, Eataly e da própria Basílica de Aparecida.

Morador de Moema e há anos frequentador da Paróquia Nossa Senhora da Esperança, ele desembolsou 250 000 reais no desfile. “Não havia como recusar”, conta. O sucesso também se verificou na procura por fantasias. Vendidas por 450 reais, algumas chegaram a esgotar na metade do ano passado.

As últimas remanescentes escoaram há três semanas. Para o dia do desfile, só restam 30% dos ingressos, com preços entre 150 reais (arquibancada) e 2 200 reais (mesa). Dos 4,5 milhões de reais gastos no espetáculo, 3,3 milhões virão de parceiros e da verba da prefeitura.

Para fechar a conta, a escola terá de sacar 1,2 milhão de reais do caixa acumulado no ano com festas e eventos. “Mas não estamos preocupados com dinheiro. Queremos fazer um desfile histórico, à altura da Virgem Maria, e, se levarmos o título, a taça ficará exposta na Sala dos Milagres, na basílica”, promete o presidente Adilson José de Sousa.

Fundada em 1954, a Vila Maria integra há vinte anos a elite do Carnaval paulistano, e seu melhor resultado até agora foi o segundo lugar em 2007. Todos ali rezam agora por um milagre de Nossa Senhora.

10 MANDAMENTOS DA FOLIA RELIGIOSA
Algumas das exigências da Cúria Metropolitana para a escola de samba

1 – Não levarás nada à avenida sem o aval dos padres.

2- Não tirarás a roupa: as passistas devem estar cobertas do 2pescoço aos pés.

3- Não praticarás sincretismo religioso.
4- Não permitirás excessos. Por isso, nada de abuso de bebidas durante os ensaios.
5- Não cometerás atos discriminatórios, mas transexuais não serão destaque.
6- Preservarás a imagem de Aparecida: em eventos na quadra, ela será coberta.
7- Não serás avarento, pois temas ecumênicos rendem pouco dinheiro.
8- Não serás orgulhoso: nada de cantar o possível título antes do tempo.
9- Abençoarás objetos antes do desfile.
10- Venerarás Aparecida sobre todas as coisas, banindo vaidades pessoais.

Amazonianarede-Veja

 

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