Almir Carlos*
Manaus, minha querida Manaus…brejeira, pacata, situada à margem esquerda do coração do Rio Negro. Transcorria o ano de 1964, já em plena Ditadura Militar, mês de junho/julho, manhã de sol, muitas nuvens no céu azul, formando figuras emblemáticas imaginadas por nós: carneiros, gatos, cachorros, velhos de barbas, pássaros, árvores, peixes, gigantes, enfim… o que nossa imaginação infanto-juvenil conseguia criar. Domingo na Vila de São José da Barra…Como sempre aquele calor causticante que nós manauaras bem conhecíamos.
Era época de papagaio _ sim, era dessa forma que determinávamos: época de bolinha, época de canga pé, época de pião, época de papagaio…Começávamos a nos movimentar bem cedinho, às vezes ainda madrugada, para prepararmos o cerol, pilando vidro, para misturarmos à cola que ficara no sereno desde a noite anterior e amanhecia derretida.
Durante toda a manhã, ficávamos a preparar todo o material para nossa brincadeira preferida: O papagaio de papel! Começávamos buscando tala de buriti lá no igarapé; raspávamos com uma faca ou canivete para que ficasse bem lisinha; passávamos no Seu Odilon e comprávamos o papel de seda (às vezes não tinha e andávamos até a Luiz Antony ao lado da Igreja de Perpétuo Socorro para comprar também linha, de preferência a linha 1 – 200jds).
Mais ou menos às 10:00h, já tínhamos confeccionado nossos papagaios, colocado peitorais, barrigueiras e rabiolas…partíamos para a pilação de vidros, de preferência vidros de lâmpadas fluorescentes; coávamos esse pó de vidros em meias de mulheres (muitas mães e irmãs dos moleques, tinham que escondê-las, senão…). lá pelo meio-dia, fazíamos a mistura da cola derretida com o pó de vidro coado e mexíamos bem até que se formasse uma mistura homogênea.
Estendíamos as linhas esticando-as de um poste a outro (mais ou menos 4 voltas) e um moleque ia na frente com o cerol numa lata, geralmente de leite ou de Neston, metendo a mão e trazendo uma boa quantidade do cerol, que ele ia passando na linha, enquanto o dono da mesma observava ao lado, falando grosso, quase uma ordem: _ mexe bem, mexe bem! Enquanto isso, a um passo atrás, vinha o afinador que apertava a linha com a devida força, usando os dedos polegar e indicador, deixávamos ao sol por alguns minutos até secar bem e começávamos o processo de enrolar numa tala de buriti previamente escolhida, fazendo a maçaroca…estávamos prontos para as tranças!
Depois do almoço, cada um ia empinando seu papagaio e o céu ficava recheado pelas centenas de voadores multicoloridos, dos mais diversos tipos e tamanhos: de Tê, de bola, de barriga, de cruz de malta, de xadrez, banda de asa…
Começavam as tranças, as entradas na mão, as boladas, as quedas, a correria dos moleques com varas…De repente se ouvia aquele grito forte na multidão: _Lá vem a MANDUQUINHA!
A Manduquinha, era um carro da Polícia, acho que uma Rural Willys, toda fechada, com duas portas atrás e com grades, servindo como cela. Tinha como missão, proibir a nossa mais prazerosa brincadeira, quebrando nossas linhas e guisando nossos papagaios. Uma das ações mais festejadas, era quando o policial chegava, tomava de alguém o papagaio que estava no ar e ele começava a colher para baixar e quebrá-lo; outro moleque dava uma embiocada certeira e o cortava na mão…era uma gargalhada geral, acompanhada de gritos, vaias para o policial e palmas para o ousado!
Por muito tempo a Manduquinha nos incomodou, mas, aprendemos com os maiores, principalmente com o Lalá e o Jadir, dois craques na arte de soltar papagaios, uma tática infalível para ludibriar os policiais: quando a Manduquinha dobrava da Japurá para a Comendador Clementino, nós amarrávamos nossas linhas em algum lugar: um poste, uma árvore, na grade do portão de nossas casas e cruzávamos os braços. Fazíamos de conta que nem estávamos percebendo a presença da viatura. Eles passavam devagar,olhavam prá nós, não viam movimento de braços flechando ou colhendo linha…iam embora atrás de outros empinadores e nós ficávamos com ar de vitória…
Uma das figuras mais conhecidas e folclóricas de nossa área, era o Cocal, ladrão que praticava pequenos furtos, sem usar da violência. Chegava com o moleque que ia à taberna e perguntava: _ o que é que tu vais comprar ?
O moleque dizia e ele com uma rapidez de um raio, tomava o dinheiro da mão do coitado e saia em desabalada carreira dizendo: _ espera ai que eu vou comprar prá ti! Aproveitava-se também da distração de algum vizinho e surrupiava uma botija de gás (naquela época, o caminhão da Fogás passava em horário conhecido por todos que já colocavam previamente suas botijas nas calçadas), uma roupa, uma sandália, enfim, qualquer objeto que ele pudesse transformar rapidamente em dinheiro. Interessante, é que o Cocal convivia conosco: jogava bola, cangapé, bolinha…Lembro de uma vez que ele trapaceou o Pauleta e este pegou uma ponteira (bolinha de gude um pouco maior que as outras) e sentou na cabeça dele…foi uma torneira de sangue, que a Graça minha irmã ajudou a estancar, após lavar com sabão tuxaua e envolver em uma toalha.
Um dia eu vinha caminhando do Ribeiro da Cunha para casa, depois das aulas e o Almir Soares (Periquito Doido), me pediu para ajudá-lo a “passar cerol”. Ele estava começando a esticar a linha no poste ao lado da entrada da Travessa Comendador Clementino próximo ao Restaurante Alvorada, quando a Manduquinha parou ao nosso lado e dela desceu um policial gordo, baixote, avermelhado, resmungando impropérios e baixando-se para pegar o carretel de linha que tinha caído no chão…Antes que ele alcançasse seu intento, o Almir deu-lhe um empurrão nas nádegas, fazendo-o cair de peito, pegou da maçaroca e num pique tão veloz, sumiu dobrando em direção a sua casa.
Tenho certeza de que se fosse hoje, nem o Usain Bolt seria capaz de alcançá-lo…Eu fiquei sem ação! O policial perguntou se eu sabia onde o fujão morava e eu disse que não, que eu o tinha acabado de conhecê-lo, que estava voltado do Grupo…Ele me olhou de mau jeito, sem acreditar, até que o Cocal que vinha chegando falou: _ Ei Francisco, deixa o meu amiguinho, não fresca com ele não, bora, me dá uma carona! Entraram no carro da Manduquinha os policiais e o ladrão, que com o braço para o lado de fora, deu uma piscadela prá mim e saiu sorrindo…Fiquei pasmo sem entender direito, como é que policia e bandido podiam conviver tão harmonicamente!
A Manduquinha dobrou a esquina e sumiu de minha vista…acho que foi a última vez que vi aquela viatura tão soturna, tão odiada e temida pelos empinadores de papagaios. Ouvíamos falar de que alguns valentões costumavam “virar” Manduquinhas em outras partes da cidade, como Praça 14, Cachoeirinha, Aparecida, Educandos e Morro da Liberdade .
Verdade ou não, a Manduquinha impunha respeito e dava tranquilidade àquela nossa querida e saudosa cidade… outrora sorriso!
*Almir é professor e pedagado e escreve costumeiramente neste Portal sobre histórias da Manaus antiga.