Na década de 60, nós não dispúnhamos de muitas opções em termos de brinquedos manufaturados; Somente quando um ou outro moleque trazia um carrinho, um jogo ou uma engenhoca vinda dos centros mais adiantados do país, quando algum parente viajava e trazia como presente, para mudar nossa rotina! Um carrinho à pilha, um jogo eletrônico ou outro qualquer, era uma novidade que nos deixava extasiados, boquiabertos, olhos fixos no brinquedo, porém, em contrapartida, tínhamos e de sobra, inventividade, imaginação,…criatividade. Com certeza Piaget teria revisto seus conceitos se nos tivesse observado em nossos momentos de gáudio, enquanto brincávamos nas tardes de frágua, na Manaus morena!
Nossos brinquedos eram confeccionados por nós, criados por nós, usados por nós. A seguir, listamos os prediletos da meninada dessa Manaus que apresentava um arrebol ingente, incomum, alaranjado como o zircão:
Carrinhos de rolimãs – confeccionados com 4 rolamentos, uma tábua forte servindo como chassi, assento, freio de mão (ao lado direito um pedaço de madeira pregado ao chassi, com pedaço de pneu) e volante, que geralmente era um arame preso aos dois terminais onde ficavam as rodas(rolamentos). Descíamos a ladeira da Comendador Clementino “lapados”, na direção centro-bairro e depois subíamos a ladeira à frente, para descermos na direção contrária. Era uma brincadeira fantástica, sedutora, inigualável, porém perigosa. Via de regra estávamos no chão, deslizando os joelhos, as costas ou mesmo o peito no asfalto. Mesmo assim, era uma brincadeira desafiadora para todos nós que, mostrávamos nossas cicatrizes como troféus conquistados com muita exsudação e coragem!
Patinetes – Confeccionados com uma tábua de mais ou menos 20 cm de largura por 80 cm de comprimento, duas rodas(rolamentos), um pedaço de madeira de mais ou menos 1 metro, servindo como volante em forma de T e com freio de pé colocado em cima da roda traseira (pedaço de pneu). Era muito utilizado pelas meninas e por nós para irmos fazer pequenas compras nas tabernas da redondeza. Era mais rápido e seguro, acionado por pedaladas no chão para dar “embalagem”, corríamos com ele, pulávamos em cima e nos equilibrávamos. Era outro dos brinquedos prediletos pela meninada.
Rodinhas de arame – Pegávamos geralmente uma rodinha de velocípede, tirávamos o aro e confeccionávamos com um arame grosso, um guia para nosso “veículo” em forma de U, com a ponta, que segurávamos e fazíamos as maiores peripécias com as rodinhas, controlando-as com tanta destreza e habilidade, que chegávamos a fazer disputa para ver quem era melhor que o outro.
Andávamos para todos os lados com esse brinquedo. Tudo que fazíamos era com ele ao lado, fosse para ir à taberna, levar um recado ou jogar futebol. Era comum após as peladas cada um pegar seu arame, sua rodinha e ir “guiando” até sua residência.
Cangas-pé – Outro brinquedo exuberante, que nos divertíamos até a chegada da noite. Confeccionado com um pedaço de cabo de vassoura, com prego na ponta (esfregávamos a cabeça do prego até ficar pontiagudo e bem afiado). Geralmente participavam dois jogadores, mas, podiam participar mais. Desenhávamos cada um a sua casa, em forma de O, e tirávamos o “ponto”, que consistia em uma linha riscada no chão e cada tinha a vez de jogar o canga-pé e quem o enfiasse mais próximo da linha, era o primeiro a jogar. O jogo consistia em circundar a casa do adversário, enterrando o canga-pé e riscando com o próprio, as linhas que circulavam pela casa do rival até chegar a sua própria casa, sem errar, ou seja, que o mesmo a cada “enfiada no chão, ficasse de pé.
Ás vezes um jogador era tão hábil, que quando iniciava, não deixava o outro jogar (ganhava de primeira), iniciando assim, nova partida.
Amassadeiras – Duas ou mais latas de leite, que enchíamos de barro, furávamos da tampa ao fundo, passávamos um arame e fazíamos, um cabo, do próprio arame e saíamos puxando pelo meio da rua, desfilando nossa criatividade e dando rédeas à imaginação, como se estivéssemos passando por diversos lugares(íamos dizendo os lugares), até mesmo fora de nosso estado.
Pião – Feito geralmente com galho de goiabeira (por ser uma madeira mais forte) e, na ponta um prego afiado e pontiagudo; era um dos brinquedos prediletos de alguns colegas, que mostravam destreza e habilidade incomuns ao manuseá-lo. Confesso que nunca consegui ser bom de peão, aliás, eu nunca consegui dominá-lo, essa é que é a verdade. Usava-se um barbante grosso, enrolava- o e jogava-o ao chão, fazendo com que ele “zunisse”, rodando por alguns segundos. Alguns aparavam-no em suas mãos, colocava-o para girar em sua testa, entre os dedos, enfim, verdadeiros malabaristas com aquele brinquedo tão simples e aparentemente inofensivo, sim aparentemente, porque de vez em quando, alguém se machucava, principalmente quando o jogador ao lançá-lo, atingia o pé de algum garoto que estava observando o jogo.
O sangue escorrido, significava o fim da brincadeira e todos corriam para suas respectivas casas, inclusive o “ferido”. Havia disputa de habilidades, provas obrigatórias e quem perdesse, era obrigado a colocar o seu pião no chão, enterrado, enquanto o vencedor, dava uma volta com sua corda, em seu pião, posicionava-o de forma a ficar com o “bico” na direção do pião inimigo e nicava-o, fazendo muitas vezes com que o brinquedo adversário “bandasse” ao meio, proporcionando uma gargalhada geral da plateia e tristeza de seu dono.
Pé no pinto ou pé no pato – Confeccionado com tampas de latas de leite que eram perfuradas, passava-se um barbante em uma e outra tampa, puxávamos um guia até nossas mãos, “calcávamos” e saíamos andando. Era na realidade um brinquedo mais infantil, para crianças de 3 a 8 anos, diferente das pernas de pau, que consistia em duas varas, com apoio para os pés e que nos equilibrávamos e saíamos dando passos até cair. Era um brinquedo para os maiores, já com 13, 15 anos em diante.
Times de Botão – Não havia brincadeira mais desejada. Todos os meninos queriam brincar com esse jogo. Confeccionávamos nossos próprios “jogadores”, com caroços de tucumã, que ralávamos no asfalto, até ficar na altura desejada (nossos dedos viviam feridos, ralados no asfalto); a seguir lixávamos com lixa grossa, depois com lixa mais fina e, finalmente passávamos cera de carnaúba, deixando-os brilhando mais que lombo de pão doce. Marcávamos em uma calçada, o estádio, fazíamos as travas com pedaços de madeira e a bola era feita com cortiça, cortando, aparando, até ficar bem redonda. Os goleiros eram feitos de caixas de fósforos, cobertas com feltro e com o escudo do time preferido e cheias de chumbo derretido deixado mexericar, para ficar bem pesados e agüentar uma bolada mais forte, sem entrar até as redes. Os times preferidos eram os do eixo Rio-São Paulo e disputávamos verdadeiros clássicos do futebol nacional. Os “jogadores”, eram manuseados com pentes ou pedaços de fórmica.
Começávamos o jogo com par ou ímpar e tocávamos a bola; ao atirarmos para o gol, tínhamos que dizer: _ coloca! O adversário posicionava seu goleiro e respondia: _ tá! Esse jogo de botões era um dos melhores passatempos, o brinquedo predileto, aquele que fazia com que passássemos a semana toda comentando uma partida, um resultado. Times que eram tratados como verdadeiras relíquias, guardados em caixas especialmente fabricadas, com todos os apetrechos para poli-los e mantê-los como se fossem jóias raras.Tinha colega que se gabava de que seus “jogadores” eram de tamanhos diferenciados e pesavam cerca de 300g cada um. Até hoje, alguns guardam esses brinquedos como se algum dia ainda voltem a realizar partidas memoráveis como dantes. Penso que eles não devem postergar e deveriam com urgência, tirar seu time do armário e colocá-los em “campo”, voltando a ser crianças; crianças talvez um pouco amadurecidas para alguns que já passaram dos 60…
Papagaio – Confeccionados com 3 talas de buriti amarradas, goma e papel de seda, no formato pentagonal, fabricava-se papagaio de todos os tipos e cores: de barriga, de cruz, de lista, de bola, de tê, de quadro, banda de asa, de escudo de time de futebol, enfim…verdadeiras obras de arte. Proibido pela Polícia, ficávamos em alerta para a chegada da Manduquinha (carro da polícia) que chegava quebrando as linhas e confiscando papagaios e maçarocas. Era nosso terror! Mas, havia os papagaieiros estrênuos, que não deixavam nossos sonhos serem transformados em pesadelos: compensavam essa atitude hostil da polícia, com verdadeiros espetáculos a cruzarem o céu azul de minha Manaus cabocla! Lembro que o Jadir, irmão do Alzeir, fez um de JADIR, escrito em cima, na testa e de tamanho grande. Foi a sensação do pedaço por algum tempo e ele o levantava só para o delírio da meninada, em horários em que não pudesse ser importunado com “tranças”. Esperávamos ansiosamente por esses breves e raros momentos. Disputávamos com os outros garotos o privilégio de enrolar a linha do Jadir ou de seu irmão Lalá.
O Lalá, irmão da Jadir, era o cara mais famão do nosso meio,e, numa “bolada”,colhia como ninguém e, com tal velocidade, que deixava bamba a linha do outro. Fazíamos cerol, com vidro e cola, comprada no Mercado Grande e deixada para derreter no sereno. Pilávamos o vidro (geralmente de lâmpada fluorescente), coávamos em meias de mulher e, aquele pó, era misturado à cola branca. “Passar cerol”, era outra técnica com segredos guardados a sete chaves, não era para qualquer um. Mandávamos um colega passar o cerol na linha, com a recomendação de mexer bem a mão e vínhamos atrás “afinando”, geralmente com o polegar e o indicador e com um pequeno chumaço de algodão, para deixá-lo bem “fino”.
Deixávamos a linha estendida ao sol até secar bem. Enrolar essa linha (em tala de buriti, hoje se enrola em lata), requeria muita técnica e esforço estrênuo de quem agia, pois não podia ficar nem muito frouxa nem muito apertada na maçaroca. Alguns colocavam gilete na rabiola, todavia, eram tratados como desonestos quem assim agia, era quase proibida essa prática, era covardia, “embiocavam” próximo ao rival e “entregavam” a rabiola. Era fatal! Lembro de alguns chavões que se usava, por exemplo: _Flecha penoso que teu pai é perigoso!, Chamando alguém Prá trançar, flechando em sua direção ou quando não estava dando vento suficiente prá levantar nossos papagaios, dizíamos: _ Vem vento maranhão, que eu te dou um tostão! Não posso deixar de citar aqui, o personagem mais conhecido e mais famoso sobre o assunto: Russo, uma figura que fabricava e vendia os melhores papagaios (flechadores) e, os melhores ceróis. Morador da Joaquim Nabuco, quase em frente ao Colégio Santa Dorothéia, próximo ao Canto do Quintela. O Russo tinha sua marca registrada em seus papagaios: uma tira de papel de seda em cada lado do esqueleto. Era fácil identificar um produto fabricado por ele. Morreu estupidamente assassinado por bandidos que fugiam após assaltarem a Agência do Big Bea, no Boulevard Amazonas e com ele se foi o segredo dos seus famosos e imbatíveis ceróis.
O mais fome de papagaio que temos notícia, é meu amigo Atala, esse ia até pouco tempo, a todos os lugares de Manaus onde tivesse papagaio em abundância para ele trançar! Só parava à noite, já afadigado e sem adversários no ar! Tempo bom de uma Manaus expurgada dos problemas sociais e ambientais de hoje, onde chegávamos a exsudação extrema, pelo sol forte e a frágua daqueles tempos. Hoje, alguns ainda teimam em “empinar” papagaios, na área próxima à Vila Olímpica, na Avenida do Samba, mas, com todo o respeito, noto-os muito “cangulas”, parecendo pacus, malfeitos e sem a beleza de nossos papagaios de outrora. Passo no local, paro o carro, desço, olho para o céu, fecho os olhos e ” vejo “ o céu repleto de papagaios e, dentre eles o meu “Bonitão”, entrando numa “embiocada” certeira, dando na mão de “Banda de asa”, que vai quedando e a meninada correndo para pegá-lo.
Volto à realidade e alguém, no meio da multidão que se aglomera em frente aos Galpões das Escolas de Samba dizer: _Flecha penoso que teu pai é perigoso! Sinto as lágrimas teimosamente descer pelo meu rosto. Limpo-as e abro um sorriso, a princípio tímido, depois quase uma gargalhada, feliz por estar ali relembrando minha infância. Entro no carro, dou partida e, pelo retrovisor, ainda vejo uma “casqueta” de “tê”, flechando para trançar com um de “barriga”…
As brincadeiras eram diversas e atrativas, dependendo do “tempo”, sim, tinha tempo de papagaio, bolinha, canga-pé e outras…
Amanhã que vem, falaremos de outras interessantes brincadeiras da saudosa Manaus dos anos 60, das quais certamente que viveu aquela época, guarda grande e saudosas lembranças.
*Almir Carlos é professor, pedagogo e escreve para este Portal histórias e estórias da Manaus antiga.
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