Prédio da Santa Casa no centro histórico de Manaus continua  em ruínas e rende pesada multa à Prefeitura

Prédio histórico da Santa Casa no cento histórico de Manaus continua  em ruínas e rende pesada multa à Prefeitura

 Grupo de voluntários tem atuado para que local não desabe, e moradores de rua fazem segurança improvisada; ex-governador chegou a prometer centro de tratamento de câncer no local, mas ideia foi abandonada.

 Manaus, AM – As paredes ainda são as mesmas, em essência, mas carregam as marcas do tempo e estão tomadas por pichações. Em uma delas, uma frase chama a atenção: “saúde brasileira abandonada”. Essas três palavras podem ser a síntese do que se vê no prédio onde funcionou a Santa Casa de Misericórdia por mais de cem anos: antes um dos hospitais mais importantes de Manaus, o local agora se resume ao abandono. 

. Se as paredes ainda estão de pé, o mesmo não se pode dizer do resto da estrutura. Não é difícil lembrar da música de Vinícius de Moraes, da casa engraçada que “não tinha teto, não tinha nada”.

Sem as telhas – item “preferido” dos saqueadores -, o prédio é completamente invadido pelo sol e pelas chuvas, o que fez com que o piso de madeira do segundo andar fosse destruído. As escadas parecem seguras por um fio. Ao contrário da canção de Vinícius, no entanto, a casa não tem nada de engraçada.

Entre agosto e setembro deste ano, o G1 retornou ao prédio da Santa Casa e verificou problemas que vão além da estrutura danificada do prédio: falta de vigilância e um alto risco de doenças, acompanhados de vegetação, água parada e concentração de lixo.

‘Nada me assusta’

Na primeira ida ao local, a equipe encontrou um rapaz que disse morar ali. “Durmo em todos os lugares da Santa Casa”, afirma o jovem, ao mesmo tempo em que pede para não ser identificado ou filmado. Ele tem 29 anos e, há três, chama de lar o antigo hospital.

O rapaz conduz a reportagem em uma espécie de visita guiada pelo prédio, enquanto conta que tenta cuidar do local como pode, tirando os resquícios de drogas deixados por invasores. Sem segurança patrimonial no imóvel, o entrevistado é uma das pessoas que tentam manter o prédio seguro. Tarefa difícil, já que são muitos os registros de invasões, saques e até homicídios no local.

“Fico por aqui, limpando. ‘Tô’ capinando também, mas preciso de uma enxada”, continua o jovem, que trabalha como catador de latinhas.

Não demora muito para que ele toque em um assunto comum a prédios centenários. Ele mostra lugares onde já viu fantasmas, mas diz se apegar ao divino para não ficar impressionado com as visões.

Nos três anos em que mora na Santa Casa, ele tem vivido situações difíceis. Uma delas ocorreu há pouco tempo, quando dormia.

“Algumas semanas atrás, estava dormindo, quando uns policiais chegaram e me ‘desceram’ a porrada. Alguém tinha assaltado o lanche [da rua em frente à Santa Casa] e eles entraram aqui atrás [do criminoso]. Depois que me bateram, foram embora e eu fiquei aqui”, relata, mostrando um ferimento ainda não cicatrizado no joelho, que diz ter sido resultado dessa “visita”.

O jovem se despede e desaparece entre as sombras do prédio, depois de voltar a negar fotos ou filmagens.

Ele é um dos seguranças “improvisados” do prédio. Outros dois também são vistos no local, mas não querem conversa – um deles é um ex-funcionário de serviços gerais do local e a única coisa que diz é que a empresa contratada para fazer a vigilância do prédio “parou de aparecer”.

Imbróglio judicial

O abandono tem custos. Em julho de 2016, a Justiça ordenou que a prefeitura de Manaus colocasse tapumes, fornecesse segurança patrimonial e o restauro ao prédio. O não cumprimento das medidas implica em uma multa diária de R$ 10 mi

Até o momento, a administração municipal ainda não colocou em prática as ordens e, hoje, já deve mais de R$ 7,9 milhões em multas à Justiça.

Outras ações que envolvem o prédio:

  • O Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM) registra 25 processos envolvendo a Santa Casa;
  • Na Justiça do Trabalho, dois processos estão em trâmite, ambos na 9ª Vara, enquanto mais de 50 ações já foram arquivadas;
  • Segundo o site mantido pela comissão de interventores do prédio, a dívida da instituição soma R$ 7.802.228,77, sendo R$ 2.797.756,90 de dívidas trabalhistas;
  • Uma outra ação envolve a Santa Casa e o Governo do Amazonas. Após um pedido do Ministério Público Federal (MPF-AM), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) elaborou um plano de ações emergenciais a serem executadas pelo Governo.

Sobre a ação do MPF, o Procurador da República Rafael Rocha explicou que o Iphan tem fornecido, de forma periódica, informações sobre o prédio. Uma decisão de março deste ano aponta que o órgão teria que passar, em até 30 dias, um relatório sobre o imóvel. Depois disso, a cada 60 dias, o Iphan deve apresentar o que foi feito do plano de ações emergenciais. Segundo o representante do MPF, os relatórios têm sido apresentados.00:00/06:25

“Em relação à restauração do bem, esse não é um pedido liminar, não foi considerado um pedido urgente, então somente após o trânsito em julgado, se a demanda for favorável, o Iphan será obrigado a projetar e a executar as obras de restauração. O Iphan disse que as condições do prédio continuam precárias, que medidas foram adotadas pelo governo do Estado.

Essas medidas são diferentes  [das colocadas] no plano de ações emergenciais, mas o Iphan entendeu que as medidas são suficientes”, explica.

Sobre o atual papel do governo em relação à Santa Casa, o Procurador esclarece que, além de o Iphan apontar as medidas adotadas como suficientes, o pedido da Justiça Estadual para que a prefeitura colocasse segurança no prédio fez com que a Justiça Federal entendesse que o Governo não teria essa obrigação.

O MPF pediu entre outras coisas, o restabelecimento da segurança patrimonial no prédio. Isso foi acolhido em 1ª instância. O Estado recorreu e nessa parte o recurso foi acolhido, porque entendeu-se que, como o município de Manaus já tem essa obrigação, o Tribunal Regional Federal da 1ª região autorizou que o governo retirasse a segurança, mas foi uma autorização: a segurança poderia continuar”, apontou.

 Diagnósticos

A superintendente do Iphan, Karla Bitar, conta que o órgão tem acompanhado a situação do prédio desde 2013. As visitas e os laudos mais recentes da Defesa Civil apontaram que não há risco de desabamento do local – situação diferente da verificada em julho do ano passado, quando o órgão estadual alertou para um “risco evolutivo de colapso e desmoronamento”.

“Pelos relatórios que chegaram a nós, consta que não há [risco]. O Iphan, quando desconfia de algum possível desabamento, solicita da Defesa Civil que faça um laudo e aí, em posse desse laudo, damos os devidos encaminhamentos. Com base no entendimento do governo do Estado, as superfícies que tinham risco de desabar foram eliminadas ou internamente devidamente isoladas, para que não se dê o acesso.”, explica a superintendente.

Karla explica que o trabalho do Iphan é estritamente preventivo, já que o restauro do prédio só pode ser feito quando ele tiver uso certo. Com isso, arquitetos do instituto realizam visitas periódicas com ações para que o prédio não se deteriore mais.

“Um projeto de restauro vai fazer uma leitura e todo um diagnóstico de ações pontuais que têm que ser aplicadas de modo a impedir, então, que a degradação venha aumentando ao longo do tempo. O prédio encontra-se descoberto, as intempéries, a chuva, o sol vão cada vez mais degradando os elementos e proporcionando um estad o de ruína. Por isso, é importante que se faça uso do imóvel e esse projeto de restauro para submeter ao Iphan”, frisa. Outro esclarecimento que a representante do Iphan faz é sobre a área tombada.

Segundo Karla, o terreno de quase 11 mil metros quadrados está dentro da poligonal de tombamento do órgão. Por isso, qualquer ação de modificação (como demolição ou acréscimo de área) deve passar por uma avaliação do instituto.

“Aquele complexo todo da Santa Casa compreende, basicamente, um prédio que tem um valor histórico cultural, somando-se a ele a capela, e uma outra ala, mais recente, de um sistema construtivo mais atual [e com] tecnologia moderna. Entendemos que pode não ter interesse de preservação nesta parte [mais nova], mas caberia um estudo aprofundado na fase do restauro”, pondera.

Interventores à espera do STJ

Em 2014, a Justiça apontou uma comissão interventora para cuidar dos interesses do prédio histórico. Quatro anos depois, os interventores veem com preocupação o estado do imóvel. A situação envolvendo a prefeitura de Manaus e a multa que já passa da casa dos R$ 7 milhões é outra questão que o grupo tem acompanhado de perto.

O processo atualmente está com a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que deve julgar, no dia 25 deste mês, os embargos de declaração – espécie de recurso da Prefeitura de Manaus, já condenada na esfera estadual.

Caso a condenação seja confirmada pelo STJ, medidas drásticas podem ser tomadas, conforme explica o interventor Tiago Queiroz, integrante do grupo que cuida atualmente da Santa

Até o nome do prédio

Segundo o interventor, os processos judiciais aos quais a instituição tem respondido ao longo dos anos podem ter sido prejudicados por uma situação que se estendeu por quase cem anos. Entre 1917 e 2015, o prédio não pertencia à Santa Casa – ela tinha apenas a posse do prédio.

“Em 1917 o Estado do Amazonas doou o prédio e o terreno para a Santa Casa e não há notícia de que houve registro desse imóvel no patrimônio da Santa Casa. Após 97 anos, graças a uma ação que movemos na Justiça Estadual, nós conseguimos que uma matrícula fosse aberta em nome da Santa Casa.

Desde 2015, a Santa Casa se tornou proprietária desse prédio. Isso afetou os processos, sobretudo os trabalhistas”, explica Tiago.

Últimos anos de funcionamento

Como já se sabe, os mais de dez anos desde que a Santa Casa parou de funcionar têm sido marcados pela incerteza sobre o destino que será dado ao prédio. A incógnita não é estranha para quem viu – e viveu – de perto a crise que culminou no fechamento do hospital.

É o caso de Cláudio Pereira Machado. O engenheiro agrônomo é filho do médico João Lúcio Pereira Machado, que trabalhou por quase cinco décadas na Santa Casa e hoje dá nome a um hospital na Zona Leste de Manaus. O prédio no Centro de Manaus também foi lugar de trabalho de Cláudio. Ele atuou como provedor do local nos últimos anos de funcionamento – em suas palavras, ele “fechou – literalmente – as portas da Santa Casa”.

Cláudio conta que formou uma comissão no início dos anos 2000 para cuidar da Santa Casa, após o Distrito Industrial ajudar na recuperação das edificações. Assim como o grupo de interventores da Santa Casa, ele concorda que a prioridade é recuperar o prédio, para então pensar em dar uma utilidade ao local. Ele cita o incêndio recente no Museu Nacional do Rio de Janeiro e faz um alerta.

“Nós vimos agora um museu importante para o Brasil pegar fogo, e nós estamos vendo um prédio histórico, que é tombado. Isso aí é lamentável. A Santa Casa como hospital é um segundo momento. O primeiro momento é a recuperação desse prédio, para que possa se preservar a história. Nós temos aqui do lado um Palácio da Justiça preservado, recuperado, e é mantido, e um prédio desse, histórico, se acabando. Meu pai, ainda em vida, doou a biblioteca dele toda para a Santa Casa, e é uma biblioteca imensa com relação à Medicina”, lembra.

Segundo Cláudio, os últimos anos da Santa Casa foram marcados por problemas financeiros, a exemplo do que ocorre em vários pontos do país. “Não é um privilégio da Santa Casa de Manaus”, diz. Ele, a família e os funcionários do hospital costumavam realizar eventos e pedir doações para manter o local em funcionamento.

João Lúcio morreu em 1998, antes de ver a Santa Casa parar de funcionar. No entanto, o filho lembra que o médico passou por dificuldades no atendimento. Nos anos 1970, por exemplo, ele e a esposa atendiam quando ocorreu a explosão de uma caldeira da lavanderia do hospital.

O ocorrido deixou dois mortos e afetou prédios nas proximidades – além de ter inspirado o nome de um bar que funciona até hoje na rua José Clemente, atrás da Santa Casa.

“Ele passou por momentos difíceis, em que atendia praticamente só, com os amigos, com o meu tio, com o meu irmão, vivia conversando com os governadores, pedia doação.

A Santa Casa teve grandes nomes na provedoria. Ele viu, em parte, as indústrias recuperando aqui. [Ver o estado atual seria] Triste, seria pra ele muito triste. Não só para ele, não, mas para todos aqueles médicos antigos”, garante.

Ocorrências

O abandono e a falta de segurança no local têm contribuído para vários crimes. Além de furtos de objetos e consumo de drogas, homicídios também já foram registrados no prédio. O G1 procurou a Secretaria de Segurança Pública (SSP-AM), mas não obteve o número total de crimes registrados no antigo hospital. A reportagem, então, destacou os casos noticiados nos últimos anos:

Outro caso curioso foi o uso do prédio para o funcionamento de uma cozinha que produzia salgados. Isso ocorreu em 2012. Na ocasião, a Santa Casa também era usada como estacionamento privado e lava jato.

O que diz o outro lado

Em nota, a prefeitura de Manaus diz que “jamais negou a importância histórica do prédio”, mas pontua que “não se pode deixar de lado o fato de que a Santa Casa é de propriedade particular, que teria a responsabilidade primeira na restauração”. A administração municipal afirma ainda achar “injusto” absorver a obrigação de restaurar o bem.

Sobre a ação que tramita na Justiça, a Prefeitura ressalta que aguarda a decisão do STJ.

O Governo do Amazonas foi procurado pela reportagem, mas não respondeu aos questionamentos sobre a retirada da segurança do prédio.

A Secretaria de Estado de Cultura informou que a vigilância patrimonial da Santa Casa de Misericórdia foi retirada do local conforme orientação da Procuradoria Geral do Estado, por meio da promoção n. 89/2018-PMA/PGE, que esclarece que o Estado do Amazonas não está mais obrigado a licitar e contratar empresa para vigilância do local, em razão da suspensão da decisão de primeiro grau.

Amaazoninarede-G1/ Camila Henriques

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